A Cabra, a Sogra e o Dexter.

Tédio, morte e zoofilia juntos num mesmo sítio.

O Formigueiro Invisível.

“Pare”, “Siga”, “Ande aqui”, “Dirija ali”.

O Mundo de Verônica

Uma entrevista do Pedro Bial no meio de uma revista Playboy.

Quando você morrer

O que você quer ser quando morrer?

Psicotuitoanalise #1 - Fanatismo

O novo método twitteriano de psicanálise avançada freudiana cerebelística anonencefálica.

quarta-feira, dezembro 10, 2014

Mágica

Ontem fui almoçar no shopping e como é de costume passei em frente ao cover do Elvis Presley, que sempre marca presença naquela calçada aos fins de semana. Eu sabia que era o Elvis pois sempre o vejo, mas naquele momento ele não estava travestido, ainda arrumava o equipamento de som com sua calça jeans e camiseta desgastada. Foi então que eu percebi outra coisa acontecendo ao lado, e mais interessante. Uma música instrumental tocava, daquelas emocionantes, misteriosas e motivacionais ao mesmo tempo, que enquanto você ouve fica com um sentimento de "caralho eu posso mudar o mundo e é isso que vou fazer a partir de AGORA". Quando identifiquei de onde vinha o som vi uma menina de uns 8 anos de idade com um sorrisinho tímido no rosto, e logo atrás dela um cara de cavanhaque e cartola, a poucos metros do Elvis. Era um mágico de rua - ou simplesmente um mágico, mas por um momento na minha cabeça existiu a categoria "de rua" - e ele tinha a garotinha como sua assistente, que devia estar apenas passando na calçada momentos antes. 

Parei pra ver o desenrolar da atração e comecei a refletir: "hm, porque será que esse cara virou mágico (de rua) hein? Essa roupa é bem simples, ele deve ter dificuldades financeiras. Será que um dia ele chegou pros pais e disse "quero ser mágico", e saiu de casa? E os pais deles, como lidar com uma situação dessas? Deve ser complicado. Se bem que depende dos pais né. Mas essa cartola barata aí não sei não. Quanto será que ele ganha por dia? Será que consegue se manter aqui em sp sozinho?". Enquanto isso ele fazia uma mágica onde colocava água dentro de um jornal e com a ajuda de sua mini assistente fez a água sumir lá de dentro, sem molhar o jornal nem nada, abrindo as páginas e mostrando que elas estavam no mais perfeito estado. 
"Claro que está, óbvio que tem um recipiente dentro desse jornal guardando a água. Mas que ele disfarça bem, disfarça. Alá, ta devolvendo a água pro copo, tava na cara mesmo. Onde será que ele aprendeu esse truque? No Mister M? Será que ele aprendeu com outros mágicos de rua também quando saiu de casa? Esse jornal ta meio velho já pra-" voltei pra realidade e vi que umas quatro pessoas aplaudiam, e o mágico reverenciava sua tímida e satisfeita assistente para o público. Acordei.

A atração ali continuava a mesma, mas nos meus olhos o espetáculo mudou. Voltei até a ouvir a música emocionante e misteriosa que tocava. A garota assistente estava encantada. Ali não existia dinheiro, trabalho, contas, preocupações, trabalhos de faculdade. Só o que existia era mágica. Ela segurava uma corda cheia de nós e... "meu deus! O mágico desfez um nó com um assopro. Como ele fez isso??" Pra garota nada importava. Quem ele era, de onde ele vinha, quanto ganhava ou o porquê de ter virado mágico. Naquele momento ela era sua assistente e tinha de cumprir seu papel que era ajudá-lo a entregar magia para o público. Seus olhos brilhavam, e tenho certeza que mesmo daqui vários anos vai se lembrar e contar a história de quando era criança e foi assistente de um mágico na Avenida Paulista.

Dessa vez curti o truque todo e aplaudi no final. Me virei e continuei meu caminho pro almoço desejando que mesmo não sendo mais criança pudesse continuar vendo a magia nas coisas. Esquecer por certos momentos que existem problemas, contas pra pagar ou projetos pra terminar. Parar algumas vezes de tentar decifrar tudo, o motivo de certas coisas serem de certas formas e apenas curtir o momento. Se entregar e permitir que o mágico me entretenha, seja ele um cara de cavanhaque e cartola ou qualquer acontecimento da vida. Se preocupar menos em como a mágica é feita nos bastidores e admirar como ela nos é mostrada com todo o cuidado pra não desvendarmos nada e nos encantarmos com ela.

Quem busca muito o sentido das coisas, acaba sentindo nada. Talvez eu fique cada vez mais velho rabugento e ocupado pra isso. Talvez eu consiga não perder o que todos temos quando criança e ter pra sempre olhos atentos e abertos à magia. Mas sei que ontem antes do almoço, ao lado de um Elvis barrigudo, eu vi. Era mágica acontecendo diante dos meus olhos.

quarta-feira, novembro 12, 2014

Mamãe

Mã, mama, mamãe, papá, totô, troca minha fralda, me dá banho, me dá a chupeta, primeiro dia de escola, não quero ficar sem minha mamãe, eu vou contar pra minha mãe, minha mãe disse que é feio fazer isso, Feliz Dia das Mães, mamãe, mãe traz a toalha, mamãe fiz xixi na calça, mãaae machuquei ta sangrando, to com fome mãe, mãe to com dor de cabeça, mãe tive pesadelo, quero dormir com vocês, te amo mãe, feliz dia das mães, mãe posso ir na casa do Pedrinho? mãe vem me buscar? to passando mal não consigo ir pra aula, mas mãe a professora que não ensina direito, foi o Pedrinho que copiou a minha prova mãe, quero ir pra escola sozinho, mãe quero ter um celular, feliz dia das mães, mãe posso dormir na casa do Pedrinho?, eu não queria ir junto eles que me obrigaram, eu prestei atenção na aula mas na prova é tudo diferente, mãe devolve meu celular vai, já vou desligar o chuveiro mãe, não quero ir dormir, não to com fome, quero ficar em casa, mãe não é pornô, ai mãe que saco, feliz dia das mães, mãe quero trocar de celular, por que todo mundo pode menos eu? a sala inteira quase ficou de recuperação mãe, que droga mãe, mãe to saindo, mãe manda o pai me buscar? agora to ocupado mãe, ainda ta cedo, to fazendo trabalho, todo mundo vê pornô ué, eu quero privacidade, mãe, você nunca me entende, eu quero sair, eu não posso fazer nada, droga esqueci de comprar o presente da minha mãe, me deixa em paz, eu sei mãe que saco, quero sair de casa, mãe to namorando, porra mãe bate na porta antes de abrir, eu te odeio, vou sair de casa, feliz dia, eu to bem mãe me deixa, mãe to na delegacia, era do Pedro mas eu tava junto, quero privacidade, quero um carro, não quero ir pra faculdade, mãe to namorando, porra mãe tenho que dar satisfações de tudo, mãe vou ser pai, eu não arrumo emprego mãe, mãe será que o pai pode emprestar uma grana? eu to bem mãe, Luizinho ta bem, Luana me largou, preciso de outro emprego mãe, porra mãe você acha que eu queria estar fodido assim, culpa sua e do pai, mãe voltei com a Luana, to mudando de cidade mãe, ano que vem eu passo , mês que vem eu vou te visitar, aqui ta tudo bem mãe, comprei um carro, dessa vez não deu pra ir mãe, mãe? Mãe vai dar tudo certo, mãe a gente ta com você, não desiste mamãe, mãe desculpa por tudo, mãe fala comigo por favor, você consegue me ouvir? mãe você é tudo pra mim, mamãe, mãe obrigado por tudo, mãe? mãe não vai, por favor, mãe me machuquei, ta sangrando, mãe

sexta-feira, outubro 24, 2014

Cidade Só



Cidade imensa
Geradora de ilusão

Cidade intensa
Fabricante de solidão

Cidade densa
Esmagadora de coração

Cidade que compensa
Quem anda na contra mão

Um quarto vira um quadro
A sala um monumento
O corredor uma tortura
Paralisado um dia inteiro

À noite resfriado
No banho sofrimento
As lágrimas se misturam
Com a água do chuveiro

Não dá pra fugir
Não dá pra gritar
Lá fora tudo cinza
Lá dentro tudo está
De graça só a angústia
E a fé no que virá

Sem moeda no bolso
Pra comprar um sorriso
Pra comprar uma passagem
Da consolação ao paraíso

Sem respostas
Sem apostas
Sem reais

A semana é um carrossel
Que se gira com o pé
O que vale é seu vil papel
Nenhum pouco quem você é

Ora quem é você?
Pra me chamar aqui
Se nada acontece

Sou aquele que sei
Que um dia vou conseguir
Ser aquilo que te apetece

Sou aquele que doma
A solidão tagarela
Que a pega no colo
Que dança com ela

Isolado por fora
Dividido por dentro
Se no coração aflora
Um suave tormento

O de baixo desce bem
O de cima sobe apressado
Enquanto o equilíbrio vem
Dos que ficam ao teu lado

Um prisma que te transforma
Um livro que te transporta
Rodeado pela escura solidão

Nove fotos sozinho 
Com o devido carinho
No centro escapa por cada vão

Cidade imensa
Que causou e curou 
Minha doença
Que ignorou e notou
Minha presença

Que me deu motivos
Pra não escapar de mim
Que agora é sala de estar
Meu escritório e jardim

****       ****
Abrigo de deusa
De fada e surpresa
Minha fortaleza
Meu coração
Minha 
paz

Cidade imensa
Selva de egoísmo e aço
Que eu conquistei

Cidade intensa
Hoje só um pedaço
Do gigante em que acordei

quarta-feira, abril 23, 2014

Vai Antônio

Vai Antônio
Sai dessa cama
Lava esse rosto
Faz essa barba
Engole o desgosto
Segura essa barra

Pega o metrô
Cuidado com o vão
Entre o trem
E a plataforma
Não olha pro chão
Não esbarra em ninguém
Não anda dessa forma

Vai Antônio 
Levanta a cabeça
Corrige a postura
Penteia o cabelo 
Esconde a costura
Vai cozinhar 
Se alimentar 
pra se sustentar 
Pra poder trabalhar
E se sustentar

Caminha e olha
Pra todos os lados
Pode se machucar
Podem lhe machucar
Carrega seus pulmões
Precisa respirar
Precisa continuar
Trabalhar pra se sustentar
Pra poder trabalhar
E se sustentar

Vai Antônio
Não perde o busão
Paga a sua conta
Cuidado com o prazo
Leva um casaco
Estuda pra prova
Agradece o moço
Pede bença pra vó
Não come só miojo

Planta uma árvore
Escreve um livro
Faz uma pós
Paga o cartão
Arruma uma namorada
Usa camisinha 
Come a salada
Não senta no chão

Não mata aula
Não faz cara feia

Não fuma maconha
Não vai se atrasar
Não mia o rolê
Não chuta a macumba
Não pega DP
Não fica sem trabalhar

Caminha Antônio
De cabeça erguida
De postura corrigida
De forma decidida 
E vai

Vai Antônio
E se der tempo
Vive
Ama
E sorri

sexta-feira, março 28, 2014

Entre Linhas

Pudesse eu te transformar num livro
Ou numa obra escrita qualquer
Pra te carregar sempre comigo
E poder ler quando eu quiser

Quem sabe um livro de poemas
Com belos versos por toda parte
Transformando todos os problemas
Em inspirações pra obra de arte

Ou talvez um livro artístico
Feito com toda delicadeza
Com seu conteúdo característico
E que exiba toda sua beleza

Te leria antes de dormir
E no caminho pra faculdade
Te leria quando quisesse sorrir
Ou quando eu sentisse saudade

Grifaria as melhores frases
Decoraria os melhores trechos
Rabiscaria as piores fases
Reescreveria os maiores desejos

Te deixaria na minha cabeceira
Ou até embaixo do travesseiro
Compraria sua coleção inteira
Mesmo se não sobrasse dinheiro

Se você fosse um livro
Teria tanta imponência
Que não ficaria bem numa estante

Você seria como um eco
Que prolonga a existência
Do que só existiria por um instante

Mas se quer saber, não faço questão
Pois te leio de forma qualquer

A cada entrelinha de cada expressão
Te leio livro, te leio mulher

segunda-feira, fevereiro 03, 2014

Nebraska - Resenha

Fui em mais uma cabine de imprensa da Sony Pictures pelo Papo de Blogueiro, com o link do post original aqui, e mais um candidato ao Oscar de Melhor Filme em 2014. Achei que ficou muito curta essa introdução mas não sei o que escrever aqui pra encher linguiça, então essa vai acabar sendo a própria encheção. Obrigado.
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Ficha Técnica
Gênero: Drama – Comédia
Direção: Alexander Payne
Roteiro: Bob Nelson
Elenco: Will Forte, Bruce Dern, June Squibb, Bob Odenkirk e Stacy Keach

Resgate ao passado, melancolia e ingenuidade, estes foram os primeiros sentimentos que tive com o início de Nebraska. Dirigido por Alexander Payne, que já está acostumado a retratar a vida de homens de meia ou terceira idade (sendo este o primeiro longa com roteiro sem sua assinatura), o filme inicia-se com David Grant (Will Forte) trabalhando numa loja de eletrônicos, e logo percebemos que sua vida não é das mais felizes, muito menos emocionante. Separado há pouco tempo de sua namorada e passando a viver sozinho, David leva uma vida de mesmice e sem grandes ambições. Enquanto isso, seu pai Woody Grant (Bruce Dern), um velho alcoólatra e nem sempre lúcido, começa uma jornada em busca do seu US$ 1 milhão, que acredita ter ganho através de um folheto de assinatura de uma revista. Com a recusa de todos os familiares em ajudá-lo, dizendo se tratar de um engano, Woody decide então partir sozinho (e andando) de Montana até Nebraska em busca do prêmio.

Além das expressões de infelicidade recorrente nos personagens, o fato do filme ser filmado todo em preto e branco (e sua bela fotografia) deixa ainda mais presente o sentimento de melancolia. Quanto mais conhecemos sobre a vida de cada um, mais sentimos suas mágoas e ressentimentos de uns com os outros. June Squibb, que interpreta brilhantemente Kate Grant, a esposa de Woody, demonstra uma enorme impaciência com o marido, já estando esgotada com suas constantes “fugas” em busca do prêmio. A presença de Ross Grant (Bob Odenkirk), filho mais velho, com a intenção de aconselhar o pai, deixa claro a falta de afeto que existe dentro da família.

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Cansado de ter de buscar o pai tantas vezes na beira da estrada, David sucumbe à ilusão de Woody e decide enfim levá-lo para Nebraska, o que irrita principalmente sua mãe. Segundo ela, David era “igualzinho ao pai“, o que podia não ser tão real, mas de fato, ele era o mais próximo e o único capaz de ter tomado tal atitude. E com a viagem inicia-se a jornada entre pai e filho, que vai se transformando até o final do filme.
Outro fato que se transforma no decorrer do filme é a tal motivação de Woody em relação ao prêmio de um milhão de dólares. Quando perguntado sobre o que pretendia fazer quando conseguisse o prêmio, respondia querer comprar uma nova caminhonete e um compressor, mas conforme o avanço da trama percebemos que não se trata apenas disso, e que por trás do desejo de ir atrás do prêmio se escondia um grande significado.

Apesar de carregado de melancolia, Alexander Payne consegue novamente encaixar muito bem o humor, utilizando-se principalmente da característica de introspecção dos seus personagens, alguns deles bem caricatos até, como no caso dos dois primos de David, mas que não tiram a imersão do filme. Com a chegada de Ross e Kate no vilarejo onde se encontravam, e a reunião entre diversos familiares, entramos mais fundo na história dos protagonistas e passamos a entender melhor sobre o passado de cada um, principalmente o de Woody.
Entre o interesse e desinteresse de seus familiares em relação ao tal prêmio, os quatro da família Grant vão se aproximando cada vez mais, e até a sempre irritada e impaciente Kate passa a nos mostrar algo mais do que vinha mostrando até então.

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Bruce Dern e June Squibb sem dúvidas são os dois destaques do filme, e ambos se distanciam da forma unidimensional, pois há momentos em que realizam atos nobres e bondosos, enquanto em outros cometem, ou confessam ter cometidos, atos não tão nobres assim. Já a Will Forte restou atuar de forma sempre pacata e impessoal, o que retrata bem a desmotivação de seu personagem com a vida. Mas sua atuação foi suficiente por exemplo para que em seus momentos com Ross, ao mesmo tempo em que demonstrava um genuíno apreço pelo sucesso profissional do seu irmão mais velho, demonstrava também certa inveja com a diferença de vida que os dois levavam. O único momento de explosão de David (não tão convincente assim) prova de vez uma verdadeira preocupação com seu pai, e finalmente no desfecho do filme entendemos, ou então sentimos, a mensagem que Nebraska nos deixa.

O tempo é inexorável. Durante a vida cometemos diversos erros e acertos, que traçam o rumo de nossas vidas e nos geram felicidades, tristezas e/ou arrependimentos. Mas mesmo que não tenhamos uma vida plena de satisfações, jamais é tarde pra vivermos bons momentos, nos aproximarmos de pessoas que deveríamos ser mais próximos, realizar sonhos ainda não realizados e até tentarmos corrigir alguns erros do passado, seja da forma que for. Nunca é tarde, enquanto estivermos vivos podemos ir atrás do objetivo que desejamos, nem que precisemos andar a pé de um estado ao outro. E independente de onde essa jornada nos leve, a jornada em si muitas vezes já terá feito valer a pena.

Enquanto a ingenuidade que vemos em Woody pode ser vista por muitos como defeito e com escárnio, pode também na verdade ser visto como um grande motivador pra se ir atrás de algo, sendo este algo palpável ou não. Real ou imaginário. Independente do que seja, é algo que nos empurra, é um combustível que nos ajuda a seguir em frente, estando nós velhos ou jovens. Estando a vida nos oferecendo ou não este algo em seu cardápio.
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Kate Grant: ” – Por que você insiste em pedir rosbife sendo que nem está no cardápio?”
Woody Grant: ” – Porque eu gosto de rosbife.”

segunda-feira, janeiro 06, 2014

Ao Infinito... e Amém.

Fazia bastante frio, mas Caio suava. Todos os dias quando ia pro colégio era a mesma coisa. Não importava o frio que fizesse, após uns quinze minutos pedalando ele já começava a sentir calor. Ele não conseguia pedalar vagarosamente, observando as paisagens, ou seja lá o que tivesse pra ver. Ele tinha que pedalar rápido. Não como um desesperado, mas rápido.
Naquele dia ele estava ouvindo rádio AM, pois seu mp3 só tinha 128mb e cabia cerca de 30 músicas, das quais ele já estava enjoado e mais uma vez tinha esquecido de trocá-las. Optou então pela rádio, pois preferia ouvir as notícias do dia do que as músicas que tocavam nas estações FM. Ouvia nem 10% do que falavam no rádio pois na maior parte do tempo sua cabeça voava. Sobre todas as coisas e em todas as direções. Ele só se lembrava de que estava ouvindo a rádio quando tocava um jingle do qual ele não gostava muito, que dizia "vambora, vambora, olha a hora, vambora!". Ele sentia um certo tipo de nervoso quando ouvia aquilo, mas não sabia explicar exatamente qual. Era diferente. É normal passar a desgostar de músicas ouvidas de manhã por associá-las com o fato de ter que sair da cama, mas aquela o irritava de um outro modo, ele só não sabia ainda qual. Talvez tivesse a ver com o fato daquela música ser associada ao pai, de quando ele se arrumava de manhã antes de ir trabalhar e ouvia a rádio no banheiro, mas agora fazia parte de sua vida também. Ele ainda não era um adulto, estava longe disso, mas estava agora ouvindo-a quase todas as manhãs.

Quando a rádio fazia um intervalo desse jingle e só ficava dando notícias, Caio aproveitava pra pensar. Ele gostava bastante de pensar sobre tudo, ainda mais sobre as coisas "difíceis de se pensar". Ao parar num semáforo, ele sentiu um pingo caindo logo abaixo do seu olho direito, na maçã do rosto. Sempre que isso acontecia ele ficava na dúvida se era gota de chuva ou xixi de passarinho, pois esta segunda ainda nunca havia lhe acontecido e ele sabia que sua hora ia chegar. Quando olhou pro alto viu um emaranhado de fios do poste, e lá mais no alto ainda, o céu. Ele queria poder voltar a cena em câmera lenta e ver o pingo subindo, voltando de onde veio, pra ele descobrir de fato sua origem. Seria um orvalho do fio, ou estava começando a chover? Enquanto imaginava a gota voltando no tempo e subindo, notou que alguém do seu lado atravessou a rua, e percebeu que o sinal já tinha aberto. Deixou então de olhar pro alto e seguiu de volta seu caminho. Resolveu que naquele dia pensaria sobre a imensidão do céu, algo que ele via todos os dias, que parecia tão perto, mas na verdade é tão longe. Que fazia parte da sua vida mas ao mesmo tempo estava tão distante. Que parecia o acolher mas ao mesmo tempo o desprezar. Podia ser bonito, mas também assustador. Tinha várias faces, e além de tudo era infinito.

Era uma loucura pra ele entender o fato de algo ser infinito. Era uma das coisas que davam "bug no cérebro". Tentar visualizar o conceito de infinito em sua mente não era possível. Da mesma forma que não dava pra imaginar de onde veio o Universo. Pra ele, o cérebro não é capaz sequer de conseguir imaginar a inexistência das coisas em si. Não se consegue imaginar o vazio.
Como imaginar se a vida não existisse? Não dá! De onde veio a vida? De Deus? Mas e Deus, de onde veio? De outro Deus? E este outro veio de outro, que veio de outro? Essa geração de Deuses também é infinita? Será que Deus é justamente isso, tudo que é infinito? A cabeça dele dava um nó. E ele até que gostava.
Pra ele as questões de Universo e Deus eram impossíveis de se refletir. Talvez seja por isso que essas coisas iniciem com letras maiúsculas, pois são coisas impossíveis de se pensar e chegar a uma conclusão de como funcionam. Assim como as pessoas. 
De onde viemos e pra onde vamos? Essa era uma questão que ele já havia desistido faz um tempo. Por ele, "vida" deveria iniciar com maiúscula também, assim como "morte". Será que quando morrermos entenderemos afinal o que é o infinito? Ou quem sabe faremos parte dele? Ou será que já somos, e até viemos dele? Ou será que aquele papo de paraíso e inferno existe mesmo? Maldito infinito. Maldito Deus. 

Ao passar por uma praça ele viu uma mulher andando acompanhada de uma criança, carregando papéis e o que se parecia com uma bíblia. Deviam ser testemunhas de jeová ou algo assim. Ele achava aquele tipo de pessoa realmente irritantes. Pra ele, parece que elas querem te obrigar a entrar na religião delas. Que desejam empurrar o Deus dela pra dentro de sua casa pra que seja o seu também. Por quê? Por que insistem em jogar o maldito Deus delas na cara dos outros? Vem com aquele papo de compartilhar a "palavra de deus", mas pra quê? Valeria muito mais a pena se ao invés de distribuírem palavras distribuíssem ações. 
Para Caio, as pessoas acreditariam mais em Deus ao ver coisas belas e positivas, ao invés de baterem com a bíblia na porta de suas casas tentando fazer com que engulam o que lá esteja escrito. Ele via muita discórdia e briga por causa de religião, e isso não fazia o menor sentido. Pra ele, religião era coisa do homem, e não de Deus. E o homem, como todos sabemos, é capaz de fazer tanto bem quanto mal. Se todos afirmavam que "Deus é amor", pra que todo esse ódio envolvido então? Foi então que ele chegou a uma conclusão sobre Deus. Não sobre o Deus de todos, mas o seu próprio. Pra ele, deus se encontrava nas coisas que transmitiam o "bem". Deus estava nas atitudes, e não lá no alto nos observando e anotando quantas bolinhas do terço rezamos. Agora então, deus não precisava mais de letra maiúscula.

Enquanto pedalava, Caio buscava então a presença desse seu deus, e ele o via por todos os lados. Devia ser verdade então aquilo de que ele é onipresente. Deus estava no sorriso dos pais que saíam do hospital carregando seu filho recém-nascido. Deus estava no beijo no rosto que a criança deu em sua mãe antes de entrar na escola. Estava na satisfação de um garoto ficando com uma menina, atrás do muro, do outro lado do colégio. Estava nas mãos dadas de um casal de velhinhos,os dois já enrugados, porém ainda juntos e aproveitando a companhia um do outro. No alívio daquele cachorro ao encontrar finalmente um lugar pra fazer cocô. No prazer daquela mulher ao correr e suar enquanto ouvia suas músicas. Deus estava por todos os lados.
Ele sentia deus ao se lembrar que naquele dia tinha novo episódio de Lost, e que à noite, quando chegasse em casa, poderia assisti-lo comendo fandangos. Sentia deus ao achar uma nota de dois reais no seu bolso, sabe-se lá desde quando ela estava ali. Sentia deus quando seu pai lhe dava um mp3 de 128mb de aniversário, enquanto todos tinham de 1gb, mas sabia que o pai nem sabia dessas coisas e comprou o que pôde, e o que o filho desejava. Sentia quando sua mãe demonstrava orgulho de quem ele era. Quando marcava um gol. Quando seu time marcava um gol. Quando fazia um gol contra, mas que tinha sido muito engraçado. Na masturbação discreta durante o banho. Ao roubar comida da geladeira na madrugada. Sentia deus quando se sentia livre, e que teria todo o futuro pela frente, podendo conquistar tudo que desejasse. Ele sentia deus na satisfação de ter concluído enfim o que seria, pra ele, deus.

E sentindo deus ele continuou a pedalar, perdido nos seus mais novos pensamentos. Até que veio um "vambora, vambora, olha a hora, vambora!" e cortou sua linha de raciocínio. Deus não está nesse jingle de jeito nenhum. Resolveu desligar o mp3 pra poupar bateria. Olhou pro lado esquerdo antes de atravessar a avenida e com uma das mãos tirou o aparelho do bolso. Deu três pedaladas rápidas e então ouviu um som tão desagradável quanto o jingle. Quando olhou pra sua direita viu um ônibus, que parecia estar maior do que o normal, talvez por já estar tão perto, e tão rápido. O som vinha da buzina estridente, que de nada adiantava, já não tinha mais o que fazer. Naquele momento, Caio não chegou a ver um filme de sua vida, mas se sua vida fosse um filme, aquilo teria sido apenas um frame. Foi muito rápido. Viu um flash do ônibus, e logo já não via mais. Sentiu como se estivesse voando, mas ao mesmo tempo paralisado. Não conseguia organizar seus pensamentos, só o que conseguia era ver e sentir. Ele via o céu, e sentia o nada. Foi a primeira vez que teve essa ausência de sentimentos. Nem paz nem agonia. Nem dor nem felicidade. E então, no último resquício de qualquer coisa, percebeu que sentia-se, assim como o céu que o encarava lá do alto... infinito. Sentiu também uma gota se esparramar na maçã direita do rosto, mas não tinha como saber se era a chuva que caíra de vez, se era lágrima, ou finalmente xixi de passarinho. Sentia que agora ele teria a resposta pras coisas maiúsculas, e que talvez elas nem fossem tão importantes assim. Sentiu que ainda não era hora de descobrí-las. Sentiu seu deus. "Vambora, vambora, olha a hora!". E então acabou. Olhou uma última vez pro céu. Agora eram todos apenas um: Ele, deus, e o infinito.