A Cabra, a Sogra e o Dexter.

Tédio, morte e zoofilia juntos num mesmo sítio.

O Formigueiro Invisível.

“Pare”, “Siga”, “Ande aqui”, “Dirija ali”.

O Mundo de Verônica

Uma entrevista do Pedro Bial no meio de uma revista Playboy.

Quando você morrer

O que você quer ser quando morrer?

Psicotuitoanalise #1 - Fanatismo

O novo método twitteriano de psicanálise avançada freudiana cerebelística anonencefálica.

sábado, novembro 02, 2013

Mendigo.

Não tenho voz, não tenho nome, não tenho família. Não sei de nada, não leio, não assisto, não como nem bebo direito. Não tenho casa, não tenho vida. Mas estou vivo, então o que é vida afinal?
Seja o que for eu não terei, pois essa é minha função: não ter nada que exista por aí. Isso faz com que eu duvide às vezes de que eu próprio existo. Mas sei que sim. Posso não existir pra você, pra ele, pra aquela senhora que passa nessa calçada todos os dias, ou pra aquele garçom ali da frente, mas pra mim, eu existo. Eu sinto, eu respiro, choro, grito. Talvez vocês não entendam, talvez nem percebam que esse pedaço de qualquer coisa aqui no canto é uma pessoa. Deve ser realmente complicado perceber certas coisas aí de cima. Mas eu, aqui embaixo, vejo tudo.

Vejo vocês caminhando, se arrumando, trabalhando. Vocês acordam nas suas belas casas, tomam um banho, escovam os dentes, arrumam o cabelo, as roupas, a pele, o cheiro. Saem de casa e vão trabalhar. Trabalham, fazem o que uma outra pessoa maior que você manda, mesmo gostando ou não. Cada um de vocês faz isso porque precisa fazer, porque não tem escolha, porque se não fizer não vai poder acordar novamente no outro dia, se arrumar, ir trabalhar, cumprir ordens, dormir, acordar, ir trabalhar, cumprir ordens. Pois se não fizer, não terá como se sustentar, não terá onde morar. Assim como eu.
Isso me torna inferior? Talvez, mas o chão que me sustenta é o mesmo de vocês.

Vocês param pra pensar se eu vim parar aqui porque eu quero? Porque gosto? Porque sou preguiçoso? Não "consigo me integrar à sociedade"? Se eu perdi tudo? Se eu tive família? Se eu sou apenas um bêbado escroto filho da puta?
Eu posso ser cada uma ou nenhuma dessas coisas, mas eu posso fazer algo que vocês não são capazes. Parar pra pensar. Vocês já fizeram isso? Já pararam alguma vez? Ah, é verdade, estão atrasados pro trabalho, desculpe atrapalhar. Mas e pensar, já pensaram? Já pensaram em algo que não gire em volta dos seus próprios umbigos? Em algo que não envolva pedaços de papeis coloridos com onças e peixes desenhados, algo que não envolva seu status, seu ego, que não envolva a buceta de cada dia que tanto almeja? Já pensaram em parar um pouco pra pensar?
São as coisas que mais faço. Sempre parado, pensando. E no que eu penso? Em tudo que me convém pensar. Mas principalmente sobre vocês. Às vezes acho que sou o próprio tempo, pois fico aqui parado, constante, imutável, invisível, mas sempre presente. E enquanto isso vocês passam, caminham, rumo aos seus importantíssimos objetivos. Eu penso que, pra mim, vocês são como essa água que escorre no meio fio, sabem? Ela sai de dentro da casa e desce a rua. Desce, desce. Não sabe o porquê nem pra quê, mas desce. Se tem uma curva, ela contorna, segue o caminho moldado pra ela e vira. E desce. A cada quarteirão deixa seu rastro, e recebe mais sujeira. E desce. Até chegar no bueiro e se encontrar com todo o resto de água suja que desceu pelas outras ruas da cidade. São como vocês.

Eu posso não tomar banho, não escovar os dentes, não passar perfume, mas vocês são tão sujos quanto eu. Ninguém é melhor que ninguém. Eu deito, sim, todos os dias nessa rua, com meu cobertor imundo e cheiro de bosta, mas deito vazio. Sem ódio, sem amor, sem dívida nem rancor. Apenas vazio. E vocês quando se deitam, como é? Não pergunto sobre o lençol de seda ou travesseiro de penas de ganso, mas no que vocês pensam? Dormem tranquilos? Sabem sequer pelo quê estão vivendo? Ou apenas acordam, caminham, trabalham, e se vendem pra poderem depois comprar pelo menos 1% de todo o tempo que viveu? Como é viver 99 dias dando dinheiro pros outros pra que no centésimo e último dia tenha um pouco pra você?
Eu não faço ideia de como seja, afinal fico aqui, parado, pensando. Não tenho história nem nome. Não tenho passado, presente nem futuro. Talvez eu seja mesmo o tempo.

Mas se querem saber de uma coisa, não odeio nenhum de vocês. Se eu tivesse aí em cima, eu também fingiria não ver ninguém daqui. Não jogaria moeda nem comida. O ser humano é assim mesmo, e seja ele imundo ou empresário, favelado ou milionário, ainda assim é um ser humano. Sofrem dos mesmos problemas, tem as mesmas incertezas. Eu por exemplo não sei o que vai acontecer comigo. Não sei pelo quê vivo, o que eu quero. Me sinto distante demais de qualquer sonho que eu tenha, e às vezes esqueço até o que é sonhar, às vezes quero morrer. E tudo isso não é coisa minha, e sim de todo mundo. Dinheiro, status, beleza ou saúde, nunca impediram alguém de tirar sua própria vida. De desistir. Todos nós somos humanos e vivemos na mesma merda de vida. Todos erramos, temos dúvidas, fazemos cagadas e algumas coisas boas (na maioria das vezes pra nós mesmos).
Eu, imundo, e vocês, bonitões, vamos pro mesmo lugar quando morrermos. Não vamos levar dinheiro, carro, namorada, emprego, nada. Todos vamos da mesma forma: iguais. Pois assim somos.

Eu não espero que vocês percebam isso, na verdade me divirto em vê-los vivendo nessa bolha imensa de ego e ilusão. Não rio pois nem lembro como se faz, mas me divirto por dentro. Acho curioso. Espero que eu possa diverti-los também com minha pobreza e podridão, que é o mínimo (e máximo) que posso oferecer como retribuição. Não precisam parar ao meu lado, dar esmola, me alimentar. Façam o que quiserem. Existam. Estudem. Trabalhem. Construam robôs à sua semelhança e deem as mãos. Explodam esse planeta. Explodam seus egos. Fodam todas e com todas as pessoas que conseguirem. Plantem uma árvore e postem no instagram pra mostrar quão eco-humanos-de-merda vocês são. Escrevam um livro sobre suas magníficas vidas. Escrevam nos seus blogs o quanto se preocupam com as questões sociais. Tenham um filho e os eduquem de forma que consigam entrar na faculdade e tenham ótimos empregos. E claro, pra que acordem, caminhem, desçam, mergulhem bonito no esgoto em que todos nós vivemos. Tenham fé, rezem, paguem o dízimo, façam bastante merda sim, mas não esqueçam de se confessar ao padre. E depois tomem cuidado pra que ele não moleste seus filhos.
Corram em busca da felicidade sem olhar pra trás nem pro lado, só tomem cuidado pra não serem atropelados, arrancarem seu braço fora e jogá-lo no rio. Sigam seus corações, amem e enganem quem quiserem, sejam homens, mulheres, travestis, árvores ou animais. Mas disfarcem e se escondam, pois nunca se sabe quando se pode apanhar na rua por causa de suas escolhas pessoais.

Eu me divirto pois isso tudo já é um caos. A vida só é bonita e justa no papel e na imaginação. Em livros, filmes e músicas. A realidade é uma só, e você fingindo que a enxerga ou não, ela continua a existir da mesma forma. Assim como eu. Mas continue criando a sua própria e bela realidade, afinal na cabeça de cada um ela é diferente. Na cabeça de cada um ela gira em torno do próprio e belo cu, e mantê-lo a salvo é o que tem de mais importante.

Vocês todos são imundos. Eu posso comer o lixo que vocês jogam todos os dias na rua, mas se pararem um pouco pra analisar, nós todos moramos dentro do mesmo e imenso lixo. Lixo que alguns chamam de sociedade.
Eu me divirto vendo essa falsa felicidade pra todo lado. Vocês são demais. Continuem assim. Lixos extraordinários, arrumados e perfumados. Assisto tudo de camarote. E mesmo invisível, parado e pensando, eu sou como vocês. Nossa única diferença é que eu enxergo tudo pois não tenho nada, já vocês querem tudo, e só enxergam o que lhes convém.
Eu sou a porra de um Harry Potter velho, imundo, vagabundo. E vocês não me enxergam pois sou um mero bruxo nojento e sujo usando minha capa da imundície. Isso deixa qualquer um aqui debaixo invisível pra vocês, não é mesmo?

E eu aqui, me decompondo, às vezes imagino: Quem sabe?
Quem sabe um dia vocês parem pra pensar também. Quem sabe percebam que vieram parar aqui não pra viverem sozinhos, e sim pra fazerem parte das vidas uns dos outros. Quem sabe percebam que a felicidade só é real quando compartilhada, e parem de viver nessa mentira que gira em volta da própria mediocridade. Quem sabe isso aconteça antes que eu acabe. Quem sabe o mundo acabe antes disso acontecer. Enquanto isso eu acompanho tudo daqui. Parado. Pensando. Fedendo.