quarta-feira, agosto 21, 2013

O Mundo de Verônica

Lágrimas. Era o que Verônica sentia escorrendo pelo seu rosto enquanto lamentava sua vida, deitada na cama. Cada lágrima que escorria era uma mágoa, uma angústia, um sentimento de que não dava mais. Acabara de completar 22 anos mas já achava que era a hora de partir. Não havia motivação, não havia mais o que fazer. Sentia como se tudo que fazia desse errado, nunca conseguia cumprir seus objetivos, e os poucos que restavam pareciam estar muito distantes. Não dava mais. Mais lágrimas.
Sentia-se sozinha, deslocada, como se não fizesse parte daquele lugar. Verônica se via como algo totalmente inútil e desnecessário, longe de ser o centro das atenções, não fazia diferença nenhuma. Se via como uma entrevista do Pedro Bial no meio de uma revista Playboy. Ninguém dava a mínima pra ela ou sentiria sua falta caso ela não existisse, ela só estava ali por estar, porque a colocaram ali.
Quando fez essa relação de ser um mero texto dentro de uma revista Playboy, Verônica soltou um leve sorriso debochado e decepcionado. Isso resumia como ela se via, como meros blocos de letras e textos com seus significados, conteúdos e ideais, desejando ser absorvida, admirada, ou pelo menos apenas vista por alguém, mas sem sucesso. Tudo aquilo que estava ao redor, nas outras páginas, acabava atraindo bem mais a atenção de todos.

Tinha 22 anos e ainda era virgem, tendo beijado apenas dois rapazes. Não que ela se importasse tanto com isso, era daquelas que não ligava muito com o que pensavam e o que a sociedade estabelecia, ou pelo menos era o que afirmava. Mas se importava, e muito, em ainda não ter chegado nem perto de viver um grande amor. O mais perto de um relacionamento que chegou foi ter sido acompanhada por Eduardo de ônibus até sua casa após terem se beijado, sendo que após o fechar das portas ela nunca mais conseguiu vê-lo novamente. Se deprimiu de início, cansou os olhos de tanto chorar e acabou guardando rancor, após um tempo fingiu não mais se importar, e por fim fingiu que superou. Mas a mágoa continuava lá. Adorava assistir a comédias românticas, assistiu pelo menos umas 50 vezes "Como Se Fosse a Primeira Vez". Se divertia e aproveitava enquanto assistia, mas no final sempre acabava se sentindo mal, desolada, mais ou menos da forma que se sentia após se masturbar pensando no Michael Fassbender. De qualquer forma isso não fazia mais importância, afinal decidiu que tudo tinha chegado ao fim, que não dava mais, aquela era a hora. Verônica decidiu morrer, e foi aí que tudo mudou.

Ao olhar seu reflexo no vidro do medicamento, que segurava com sua mão trêmula, Verônica teve um insight, e acabou até quase esquecendo qual foi pois ficou pensando por que ainda usam a palavra "insight" ao invés de darem uma tradução pra ela. Verônica parou, seu coração deu uma acelerada, ela refletia, discutia e debatia hipóteses dentro da sua cabeça, duvidava da conclusão que havia acabado de chegar, mas por mais que tentasse ser racional não conseguia derrubar a verdade que acabara de desvendar. Continuava olhando o seu próprio reflexo distorcido, até que soltou o vidro, deixando-o cair no piso, e afirmou a si mesma, estupefata, em voz alta: "Eu sou uma personagem!".

E assim, de repente, Verônica passou a ter certeza de que tudo aquilo era uma mentira, que ELA era uma mentira. Ela estava na verdade dentro de uma história, era uma simples e inútil personagem. Percebeu que sua personalidade não passava de uma personalidade padrão, com a qual todas as mulheres se identificam. Se sentia frágil, desajeitada, com baixa autoestima, e frequentemente autodepreciativa. Se colocava pra baixo muitas vezes, mesmo em seus pensamentos. Insegura como era, sempre que se apaixonava ficava desconcertada perto de seu grande amor, e o tinha como um ser extraordinário e maravilhoso, praticamente perfeito. Estava sempre à espera de um romance para fazer de sua vida algo excepcional, em vez de tentar procurar sua felicidade com as próprias mãos. Era óbvio que era uma personagem, e o pior, escrita por alguém que utilizava destes estereótipos femininos pra conquistar mais leitoras.
Resolveu tomar uma providência pra deixar de ser quem era, e quando finalmente descobriu a verdade, sentiu que poderia se livrar de tudo e finalmente ser quem realmente quisesse. Olhou para o alto, onde teoricamente seu Autor se encontraria, e gritou: "Eu descobri toda a verdade! Descobri que sou apenas uma personagem qualquer, com uma personalidade padrão, vivendo às Suas custas! Mas com uma coisa Você não contava! Não contava que eu iria me descobrir sozinha. Agora me livrarei de Você, agora posso ser o que eu quiser! Como eu quiser! Irei me transformar, sair desse estereótipo imbecil, e não há nada que Você possa fazer pra me impedir!".

Verônica então saiu correndo do banheiro, decidida a desaparecer, decidida em se transformar. Fugiu de casa, largou tudo o que tinha, pois sabia que tudo aquilo era uma mentira. Mudou de cidade, de emprego, de faculdade. Ela queria ser diferente, queria romper com tudo e com todos, fugir daquele estereótipo que lhe era imposto.
Foi morar em São Carlos e lá iniciou sua faculdade de Letras. Decidiu que se tornaria escritora e criaria diversas histórias e mundos futuramente, onde suas personagens seriam fortes e originais, donas de seus próprios destinos e que vão atrás de seus sonhos sem depender de mais ninguém.

Anos se passaram e Verônica já era uma mulher completamente diferente. Agora com 28 anos, trabalhava na área editorial e no tempo livre saía com seus amigos e escrevia.
Aos 30 anos se casou com Marcelo, um rapaz que conheceu na editora em que trabalhava. Não foi como um conto de fadas. Não houve sofrimento, proibição, nem sequer dificuldades. Eles apenas se conheceram, saíram, e simplesmente sentiram que davam certo um com o outro. Ela não o via como um príncipe, nem como perfeito, mas via nele uma pessoa que a completava, e sentia que o completava de volta. Ela o abraçava por inteiro, com todas suas qualidades e defeitos, e cada vez mais o amava, desejando ser ele a pessoa com quem passaria o resto de sua vida.

Já aos 40, com mais de dez livros lançados e centenas de milhares de cópias vendidas, Verônica já começava a planejar abandonar qualquer outro tipo de trabalho e viver apenas através dos seus livros. Seu objetivo era que daqui não muito tempo pudesse passar a viver apenas viajando e escrevendo suas obras. Sua série intitulada "Coração Cheio de Algodão", que continha como protagonista Sarah, uma moça que se se sentia dividia entre liderar um grupo feminista e largar tudo pelo amor da sua vida, já era uma das mais vendidas na época, e ainda tinha muito pra render. Mas os planos tiveram que ser abandonados abruptamente. Marcelo descobriu que tinha câncer de próstata, e, com dois anos e meio de tratamento, veio a falecer.

Verônica então afundou-se em si. Ainda tinha, teoricamente, grande parte da vida pela frente, mas não tinha com quem quisesse vivê-la. Todos os planos tiveram de ser abandonados e esquecidos, como se nada tivesse sido pensado. Passou a apresentar indícios de depressão leve e por isso voltou a tomar seus medicamentos. Numa noite, em seu banheiro, Verônica abriu seu armário, pegou seu vidro de remédios, abriu, e congelou. Déjà vu. Se lembrou de anos atrás, quando se sentia arrasada da mesma forma, segurando um outro vidro de remédios. E o ódio surgiu. Verônica, abismada, sentiu que havia entendido tudo, mais do que daquela outra vez. Ela ainda não era livre, Ele ainda estava ali. Ainda era uma personagem. Tinha certeza disso, foi tudo pensado por Ele. Cada problema, cada obstáculo, cada conquista e cada tragédia. Só isso podia explicar os vários episódios que passara na vida. Ela nunca seria livre. Ficou transtornada. Decidiu que era a hora de acabar com tudo, e se vingar.

Sua vida não fazia mais sentido, só o que queria era se vingar dessa injustiça. Foi até seu quarto, sentou-se na cama, pegou seu notebook, e gritou, olhando pro alto: "Pois se é a mim que Você quer, a mim Você terá! Eu desisto de tudo. Desisto de ser livre, de tentar ser dona da minha própria vida. Já que foi Você quem me criou, e é Você quem vai continuar traçando o rumo da minha vida pra sempre, que seja do meu jeito! Ficaremos juntos, sim, até o infinito. Juntos num ciclo sem fim. Seremos ambos personagem e autor. Criador e criatura. Escravos um do outro. Agora serei Você!"

Verônica então assumiu um pseudônimo e criou uma nova personalidade, na verdade não uma nova, mas a Dele. Fechou os olhos e, num segundo de inspiração, assumiu que seu novo nome seria Januzza. Se ajeitou na cama, criou um blog e deu a ele o nome de "Januzzismo", que foi o mais ridículo que conseguiu pensar aleatoriamente. Clicou em nova postagem, e então começou a escrever a Sua nova e própria história:

Lágrimas. Era o que Verônica sentia escorrendo pelo seu rosto enquanto lamentava sua vida, deitada na cama. Cada lágrima que escorria pelo seu rosto era uma mágoa, uma angústia, um sentimento de que não dava mais. Acabara de completar 22 anos mas já achava que era a hora de partir...

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